MULTIPLICIDADE SENTIMENTAL

MULTIPLICIDADE SENTIMENTAL

Agora, depois de dois bebês em nossas vidas, eu e minha amada passamos a assistir filmes entrecortados. Leite lá em casa é a palavra de ordem. O mais velho acorda pedindo “gagau” e a mais nova chorando pelo seio materno. E assim se passam minutos, horas e dias. Minha esposa e suas olheiras dividem a bipolaridade materna entre os desejos de eternamente ter uma pequena sorrindo sem motivo em seus braços e o sono que a deixa abatida. Isso vem bem a calhar com um episódio que fragmentadamente assistimos. Tratava-se de uma ilustração de um menino com um coração subtituído por um relógio cuco ao nascer. O mesmo não podia apaixonar-se sob o risco de decompasso da sua bomba nada fisiológica. Em detrimento da razão seus pensamentos desejam uma jovem míope que por ele se enamora também. Afastados pelo destino suas almas se atraem com o passar dos anos. Marcados pelo distanciamento ambos vivem o sonho de um reencontro, mas o menino, agora rapaz, ainda não sabe se seu coraçao amadeirado resistirá aos efeitos adrenérgicos de suas experiências amorosas. Enquanto assisto essa trama meio louca com ares de musical mantenho minha cabeça maquinando sobre o futuro que ao jovem teria sido reservado pelo pouco convencional autor. Surge então um entusiástico personagem, um amante nato, chorando por uma amada que o deixou e ansiando por novos amores. Ao saber da angústia sentida pelo seu novo amigo na busca por sua musa, o mesmo é questionado sobre como seria possível conviver com dois sentimentos relacionados a mesma questão. A resposta dele me deixa fascinado. Ele fala de quanto é fabuloso ter algo em sua vida que floresça tanto na alma a ponto de nos fazer ter vários sentimentos suspirando em nossos pensamentos. Essa pluralidade só havia de ser um presente, uma explosão emotiva, um extravasamento do eu, a surpresa do conflito interior a ser revelada pela vida, pelo tempo, pelo desenrolar dos fatos, das reações, das atitudes, ou seja, pelo incontrolável acaso que nos permeia misturado com a impulsiva necessidade de controlar nosso rumo. 
Recentemente um amigo me conta sobre sua experiência com a mudança de apartamento. Passado seu vislumbre de que economizaria energia por contar com sistema de aquecimento de água ele relata a tristeza de ver tantas moléculas de H20 ralo abaixo durante a espera pelo aquecimento delas. Essa dualidade sentimental foi a chave para a solução. O colega instalou chuveiros elétricos em todos os seus banheiros e agora os liga no início do banho e os desliga na metade, quando sente que o boiler assumiu a “responsabilidade” por tornar seu banho relaxante.
O cinema de antigamente recebeu forte impacto sobre tendências que o lobby do tabagismo imprimiu em sua amostragem. Belíssimas mulheres exibiam suas biqueiras acopladas ao cigarro e fumavam com estilo, de pernas cruzadas, fazendo biquinho, algo extremamente sexy e atrativo naqueles tempos. Hoje fico imaginado que, para um não fumante como eu, deve ser uma mesclagem sentimental quando se beija uma tabagista. Talvez preferisse apenas uma boa dança e cheiro no pescoço, carregando a tristeza de achar-me incompatível com a escolha dela. Se valesse a pena eu faria o inverso do amigo desligando interruptores em seus banhos, reservando beijos antes do fumo e “fumo” depois dos beijos…kkk.
Passadas essas exemplificações gostaria de expressar meu fascínio a respeito da nossa multiplicidade sentimental. Parar para tomar decisões nos abre um leque de pensamentos que por vezes nos conduzem a surpresas para nós mesmos. A vida é um filme em tempo real. O agora já passou e o depois já vem chegando. Passei um bom tempo para começar a aprender com minhas experiências sem tornar-me refém delas. Viver o passado é criar barreiras pra frente. Não é preciso incorporar maniqueísmos. Com o desenrolar dos anos percebemos que as escolhas levam em consideração pensamentos eminentemente não antagonicos. Como diz meu pai não existe problema sem solução, nem solução perfeita que não possa ser corrigida a qualquer tempo. Meu desafio agora, depois de ter tirado o passado do meu futuro, é preencher esse vazio que criei lá na frente. Não tenho a cabeça tão zen para seguir no “deixe a vida me levar”, portanto melhor preencher os meus espaços comigo mesmo, seguindo atrás de sonhos que vou colocar em minha mente. A vida se reinventa. Fazer diferente é experimentar-se de outra forma. Pretendo segurar minha insegurança, entendendo que desejos verdadeiros nos fazem colher sorrisos. Colocar anseios em prática é sair do conforto dos pensamentos. Entender que alegria não existe sem tristeza nos faz conviver com esta e celebrar a outra. Nao há como valorizar o sorriso sem ter chorado as lágrimas da decepção. Somos tão complicados que felicidade ininterrupta seria entediante. Livrar-se da amarras mentais faz bem pro seu futuro qualquer que seja ele.