QUESTÃO DE PAI

Acabei de fazer uma viagem com avô e filho. Três gerações no carro, uma grande responsabilidade. Enquanto o pequeno dormia passei a ida inteira dialogando com o mais velho de nós. Ele teve uma infância marcada pela ausência paterna, pois meu bisavô abandonou o lar no interior para viver com uma outra família na capital. Todas as semanas o infante vinha receber na rodoviária o dinheiro enviado pelo pai, mas por vezes voltava pra casa de mãos abanando, situação na qual recorria a ajuda financeira de um tio. Nessa idade ele se dispunha a fazer serviços de entrega para angariar algum pouco dinheiro, o qual era destinado em completude para sua mãe . Crianças pobres são surpreendentemente bem educadas financeiramente, pois em detrimento da sua infância roubada, dos seus desejos podados, sua carência afetiva, necessidades físicas e emocionais negligenciadas, elas destinam seu apurado ao lar em apuros. Meu avô era o mais velho, aquele que ao ver o lar abandonado se sente na obrigação de puxar obrigações pra si assumindo parcialmente um cargo de irmão/pai. Nada justo isso, bem como nosso nada justo mundo.
Ser pai é tornar-se responsável por alguém, e amar, batalhar pelo sucesso da prole, alegrar-se com besteira, frustar-se na sua própria inexperiência , aprender a controlar-se para mostrar o que isso significa, desejar estar doente no lugar do filho, viver querendo voltar pra casa.
Nesses dias ouvi relato de uma colega sobre a separação dos seus pais. Na época seu rendimento escolar foi ladeira abaixo. Seu pai abraçava os filhos em pranto e prometia que nada iria mudar. Passado o tempo marcas da distância destruíram as promessas e também a relação fraternal. Hoje adulta essa mulher promete fazer diferente em tentar fugir da sina que marca a reproducibilidade comportamental subconsciente tão humana. Espero que ela não cumpra o papel materno no desenlace matrimonial. Desejo que o amor por um escolhido marido destine um pai presente aos seus filhos. Tomara que sejam vertidas as lágrimas de uma jovem que ainda se alegra ao ver o progenitor que a abandonou, ainda torcendo que nos desencontros encontre amor naquele lembrado pelas lembranças que envelhecem a cada dia.
Um grande amigo me conta sua versão sobre o dia em que seu pai não voltou. Ele foi retirado de casa para não ver a partida. O fato de não ter se despedido o custou uma lembrança vazia, de um momento não vivido, uma lacuna mental a ser repetida temporalmente. A falta de entendimento infantil sobre fatos assim é uma tempestade de imaginação sofrida. Sua relação com o irmão mais velho guiou seu caminho moral. Ele transferiu um relacionamento, mas não a saudade. A criança sofre quando vê o amor que tinha destinado a sua pessoa colocado em novos meio irmãos fruto da família crescida em outro lar. Se pergunta porque foi trocado, porque preterido, onde foi que errou sem querer. Não dá para pedir desculpa sem culpa, mas essa persiste e machuca. Esse meu amigo casou sem querer ser pai. Algo muito bem estabelecido entre o casal até chegarem os badalos do relógio biológico dela. Como o tempo corre igual para os belos casais , o relógio dele temporizou com o dela. Há 6 meses eles são os pais mais felizes do mundo, e ele teria se arrependido do que nunca teve, mas é forte e amoroso, dará o que não recebeu, será o pai que desejou nos seus próprios sonhos. Lindo de ver isso.
Aos 11 anos meu avô foi convidado a compor com a outra família do seu pai. O cidadão pacato que conheço batia todos os dias no seu meio irmão. O desamor paterno era transformado em ira contra quem não tinha nada a ver com seus problemas.
Nesses dias ouvi a história de uma cidadã que decidiu assistir TV na casa de uma vizinha de sua irmã. Passado um tempo esse hábito virou costume e a mesma assim continuou durante sua gestação. Teve seu filho e então também o levou para tal programação, a qual infelizmente parou de acontecer com o proposital esquecimento do bebê em tal domicílio fornecedor de entretenimento áudio visual. Criança criada por novos pais e talvez mais feliz que algumas com lares desfeitos.
Meu tio solteiro perdeu seu amado filho adotivo em um evento trágico. Passado algum tempo do trauma adotou três irmãos que viviam num lixão. Esse é mais pai que muita mãe, ultrapassando os limites de paciência e cansaço dos quais tanto padeço.
Em outro lar o marido dispõe de mais tempo que a esposa para passar com sua única filha. Esse é o tema das psicoterapias dela, pois seu papel de supermãe é de certa forma abafado pelo super companheiro. O mérito dele é cuidar das duas e amar, amar e amar.
Noutro lar, uma psicoterapia infantil escolar filmada é exibida ao pai . Nela pergunta -se ao filho como era seu progenitor. Resposta: “parecido comigo, mas alto e forte”. “O que faz ele? — Cirurgia. Sai que horas de casa? –Cedinho. Volta que horas pra casa? …”. Muito choro sem resposta. Chorou também seu papai ao assistir aquela reação.
Ser pai é o máximo, ser filho também. A vida é um ciclo que se fecha em nós mesmos. O amor é como um nó num laço de seda, tem que ser apertado, mas escorregando para permitir mais conteúdo. Há de ser observado para não se deixar puxar pelas pontas, mas cria extremidades maiores que os limites imaginam. Ser pai é puxar o laço por dentro sem deixar o amor escapar, pois cada enlace fora deixa o primeiro nó na frouxidão que balança a vida dos seus filhos. Se seu enlace com a companheira se desfizer, mantenha seus filhos amarrados no seu coração, presos nas suas memórias, inseridos nos seus pensamentos, cuidados com o carinho as vezes não recíproco, mantidos na saudade de quem nunca os abandonou.