TEMPO DO TEMPO

TEMPO DO TEMPO

O senhor é dono do seu tempo. Segundo religiosos, nascemos com um relógio não biológico, desses de hora marcada apenas pela vontade divina. Na última semana, tive contato com o termo “hospital de transição”. Trata-se de um novo modelo hospitalar para tentar abraçar doentes crônicos vítimas de intercorrências que os deixaram sequelas e dificuldades de reinserção na sociedade. As histórias de vida entrecortada são de cortar o coração. Um “idoso jovem” (analogia ao termo adulto jovem usado uns anos antes dessa “melhor idade”), que sofreu AVC e evoluiu com importante sequela motora; uma adolescente que caiu de um banquinho quando tentava tirar um objeto do armário e cursou com grande perda de massa encefálica… e por aí vai. A tristeza de um espectador que olha para uma foto passada de alguém saudável acima de um leito de luta. Costumo dizer que não é merecida desventura para gente boa, mas não é assim “que a banda toca”.

Por falar em banda, aproveito para falar dos Beatles. Como não se tornar famoso com uma música do tipo “let it be” (there will be an answer)? Em terras tupiniquins, também me deleito quando ouço um “deixa acontecer” naturalmente cantado alegremente pelo grupo Revelação. Legião Urbana embalou muitas baladas falando do “tempo perdido”, em meio a suor sagrado, olhos castanhos, abraços e dominação temporal em detrimento ao medo, promessas e dúvidas. Nana Caymmi dava uma “resposta ao tempo”, quase como uma árvore balançada por ventos e lembranças de amores escurecidos, paixões disputadas entre o ser e o relógio, prisões e libertações do eu.

Enquanto envelheço, me aproximo do carinhoso apelido que meu pai deu ao seu mais velho irmão, “rato velho”, uma apologia à eventual potência sexual decrescente com apenas duas características bem marcantes mantidas pelo remanescente desejo de ser, que são a possibilidade de ainda cheirar e roer (idosas ratazanas perderiam a capacidade de comer nessa interpretação animalesca). Fato é que disso tiro meu crescente prazer pelos odores. Por vezes, abro as janelas do carro para cheirar o mundo. Minhas memórias olfativas enriquecem a alma. Eu, que sempre admirei a visão, consigo até entender as sutis adaptações de vida que cada um de nós terá de passar, mudando gostos e acomodando necessidades. Como adoro música, percebo-me cada vez mais afeito ao conteúdo delas, deixando de lado adereços sonoros para focar nas mensagens que alguém escreveu, enquanto perco minha capacidade auditiva.

O tempo de hoje é corrido, mas antigamente se morria aos 40, por vezes com grandes feitos. Atualmente, não é raro viver mais que o dobro e não ter visto a vida passar ou sem ter passado por ela. Um primo do meu pai se dizia em estado de completude enquanto exercia seu ócio numa rede balançando. É preciso tempo para o ócio. É preciso ócio para criar, descanso para crescer e energia para os feitos. Esgotamento é fossa em todos os sentidos.

A sociedade da curtição exerce rápidas curiosidades rasas e nunca se demora no próximo. O homem do trabalho é prudente pelo aprisionamento do foco, mas se perde no cansaço pelo excesso e, em seu repouso, não descansa, fingindo entreter-se numa massificação de atenção sem pensamento, através da qual se assemelha ao idêntico distante do outro lado da tela, se encaixota num modelo que não serve a si, envelhece mentalmente pela falta da experiência profunda que a outridade em sua eventual negatividade pode dar.

Nesses dias, ouvi um afortunado falando que rico é aquele que é dono do tempo. Bom para ele poder usufruir das duas riquezas simultaneamente, diferente da maior parte da população que, pela desigualdade, não tem nenhuma dessas. Por outro lado, trago minhas frustrações quando deixo de acoplar minha energia às coisas boas, pois equacionar o tempo tem que ser algo a respeito de rentabilizar-se nas responsabilidades, mas sem perder a saúde para o gozo. Estar cansado na hora de usufruir não é nada gratificante.

Minha esposa foi tentar explicar ao filho mais velho o que seria uma nebulosa. Teve que falar em anos-luz. Muito interessante a nomenclatura dessa medida por expressar comprimento, mas em seu nome trazer temporalidade. Por isso afirmo claramente, tempo é distância também. E tempo distante afasta, lembrando-me de uma workaholic que passa um ano trabalhando em outro país, longe do marido e dos filhos, dormindo apenas 3 dias por mês fora do hospital. É preciso de tempo para viver relações.

Sempre é tempo para escolhas, e ele traz algo disso consigo, pois você tem a capacidade de gerir seu relógio. Do passado se faz uma história, poucas paixões se transformam em amor, mas o futuro utópico precisa ser imaginado e o objetivo desacoplado do desejo nem brota a flor da paixão e, consequentemente, não poliniza para o fruto do amor. Plantar é preciso. O tempo é imunizante das atitudes, amigo da razão em mentes frutíferas, uma dádiva a ser explorada, descontrolada aceleração que só para quando não pode ser mais contado por ti. Portanto, valorize a vida e saboreie o presente, pois esse é o tempo do seu tempo.