MEIA VIDA

MEIA VIDA

Nunca pensei que fosse sofrer do que chamam de crise de meia idade. Hoje acabo de religar meu computador de mais de uma década de idade logo depois de o mesmo ter voltado do seu último conserto. Dessa vez minha esposa foi buscá-lo e o deixou aqui em cima da mesinha dele. Já é dezembro e ela quer trocar meu velho “amigo” por um novo como forma de me presentear no Natal. Acredito que o rapaz da informática deve ter repetido pra ela o que me disse quando estive lá da penúltima vez, que era melhor eu partir pra outro, que não mais valia a pena consertá-lo. Não sabem eles que essa foi uma das minhas grandes compras na vida. Na época me custou uma quantia representativa para um recém-formado. Meu cartão de crédito se transformou em crediário para poder adquirir este intermediário modelo de desktop. Trata-se de uma daquelas situações em que o vendedor acha que não concretizará a venda.
Ainda em outros teclados escrevi neste aparato da informática canções de amor, trabalhos de medicina, cartas para minha empregada, a qual eu nunca encontrava em casa, minhas primeiras internalizações externadas, mas também interpretei a ciência procurada em buscas e vivi as emoções de quem me escrevia a distância. Hoje não pareço desapegar fácil de geradores de lembranças. Ligar minha máquina de novo me leva ao passado. Agora coloco cada um dos seus fios de forma ligeira, sem mais aquele zêlo ou cuidado excessivo inicial, sem preocupação onde cada um se encaixa, sem besteiras, com a intimidade de quem quer o abraço sem cumprimento prévio.
Olho pra trás e percebo que dez anos se passaram. Eu era outra pessoa, outra cabeça, muitos planos, menos idealismo, muito pé no chão, quase sem asa, sonhos contidos numa energia focada, fincada, menos realismo também, andando com uma viseira seletiva de pensamentos, muitas dúvidas rasas, agora trocadas por poucos abismos. O impulso me deixou em dois aspectos: por um lado saí da inércia ao reverso, pus o pé no freio para mudar o movimento sem sentido que consome corpos insanos pelo sucesso, passei ao comodismo do lar e a felicidade dos sorrisos fraternos em noites banhadas aos choros de gengivas infantis, sem dentes, por outro lado deixei a impulsividade adolescente remanescente naquele adulto jovem, racionalizo sentimentos tentando o equilíbrio desviado das extremidades, nunca mais fui tomado por aquela raiva que me fazia perder as estribeiras mentais.
Hoje escutei uma música que em determinado trecho fala em não se ter “nem mais uma dúvida”. Era relacionada a relacionamento, mas mesmo assim parei pra pensar a respeito da ausência de incertezas na vida. Venho lendo a respeito da moralidade. Filósofos passaram centenas de anos abordando a existência de Deus como principal temática de seus debates até a aparição de um cidadão chamado Charles Darwin com sua teoria de evolução das espécies. Ele fez com que até os mais religiosos passassem a adequar o seu conceito divino. Porque não se ater apenas ao caráter humano da humanidade? Schopenhauer acreditava numa vontade desapegada dos nossos desejos, algo fora de controle, desenfreado na sua perspectiva de realização, um fenômeno natural no qual não podemos interferir. Fora isso falava em uma moral própria a qual deveríamos nos submeter sob a perspectiva de, diante da sua perda, gerar um desbalanceio social que não repercute apenas em si, mas também nos outros que o cercam. A arte é vontade emanada do corpo, o desfrute dela também pode ser a incontrolável vontade do prazer, algo desumano demais pra ser interpretado sem falar em alma ou em loucas conexões nervosas que a diferente química cerebral das nossas cabeças nos fazem ter em pensamentos tão distintos.
Ultimamente tenho encarado a vida de todos como um livro. Todos escrevemos nossas histórias de caneta. De borracha temos apenas o tempo, mas ele se presta mais a apagar sentimentos do que fatos.Compartilho com alguns que o livro de cada um deve estar voltado pra baixo, só vemos suas capas, e todos as decoram tentando passar uma certa ideia do conteúdo das folhas. Nessa semana vi um carro adesivado com o dizer: fácil me julgar, difícil ser eu. Acho que de certa forma expressa um pouco minha teoria. Cada dia uma folha, algumas sem nada escrito, outras desenhadas, rabiscadas, babadas, perfumadas, rasgadas, griladas, enfim, infindáveis conteúdos vistos na essência apenas por sua alma solitária, que divide momentos, mas não se deixa ler nas entrelinhas. No papel palpável fatos interessantes. Minha mãe com seus cada vez mais antigos livrinhos de recém-nascidos onde existe apenas uma página para guardar os fios de cabelos dos seus filhos. Em seu livro da vida talvez tenha uma peruca nossa ocupando um capítulo. No mundo real uma frase lembrada sem a voz, no livro da vida a lembrança de uma página já escrita. Quanto a caneta, permanece a mesma, mudada a tinta, o jeito de escrever, o calo das mãos. Torçamos apenas para termos mais papel, e que esse possa ser preenchido de vazio ocioso criativo ou de tinta derramada de alegria, nesse livro sem borrões, no íntimo das nossas interpretações, nesse roteiro único que é a vida de cada um.
Que meia idade nada, depois de tudo isso escrito trocarei apenas o computador. Permaneço com vontade de escrever para mim e para os outros. Tenho alguns ferrugens do tempo, como na minha antiga máquina, mas os dedos calejados não param de digitar experiências de uma vida agraciada com folhas que ainda querem ser tocadas por mim. Sai a meia e entra um quarto vivido na minha conta de desejos temporais.