MUNDO LÍQUIDO

MUNDO LÍQUIDO


Eu costumava ver as coisas de outro jeito quando criança. Até aí tudo bem, tudo normal. Eu não tinha metade dos conhecimentos de mundo que tenho hoje. Menor ainda era a minha interpretação a respeito desses dados. Via tudo muito grande, muito complexo, mas haveria de ser fácil para os adultos, os quais deveriam ser os portadores da tranquilidade que o saber há de trazer junto aos cabelos brancos. Chegar na vida adulta com dúvidas deveria nos devolver de volta a idade para vivermos um pouco mais antes das responsabilidades baterem na porta que agora é minha, ou sua.
Eu imaginava que a mecanicidade humana me traria com treinamento e prática alguma habilidade muito ímpar a ser transformada em dinheiro para usufruir da vida. Agora vejo robôs fazerem coisas bem melhores que nós. Alguns já aprendem coisas novas e desenvolvem raciocínio. Até empatia era por mim considerada uma espécie de sentimento, mas cheguei a conclusão de que trata-se de atitude, de ser hospitaleiro e permitir que o outro goste de estar contigo. A “psicopatia” dos robôs os deixa mais adaptados a antipatias, mas sua falta de humanidade não consegue substituir humanização .
Vivendo numa sociedade que prega um conceito meritocrático atrelado a resultados, a histórias de sucesso contadas de trás pra frente, vivemos o viés propagandeado pelo capitalismo, as exceções como exemplo, a admiração pelo inatingível, a felicidade vendida em produtos inanimados, a fé alimentando inescrupulosos enganadores enriquecidos com a compra e venda de culpas.
Tempos atrás recebi um livro de um agora falecido Frei. O mesmo tinha textos sucintos e marcantes, lições de vida, mas sempre com uma conotação religiosa. Nele escrito que os oprimidos só existem devido a opressores. Dizia também que não se deve pedir desculpa sem culpa devido a efemeridade que isso representava, a falta de sentimento em algo tão nobre, o ato de reconhecer a culpa. Atualmente estamos aceitando as desculpas aos delitos infantis do meu filho, mas o cobrando por atitudes, menos arrependimento e mais sapiência  para seguir no caminho menos espinhoso.
Nos consultórios de psicologia o produto a venda já está com o cliente mesmo antes da consulta. O profissional em questão só vai ajudar seu paciente a destravar suas virtudes, o que por muitas vezes encontra-se muito bem trancafiado nos segredos mentais mais profundos. Se eu pudesse perguntar as pessoas o quanto elas fariam para serem felizes muitas responderiam que trabalhariam dia e noite, perderiam alguns de seus programas prediletos, investiriam um monte de grana no projeto sorriso, abdicariam de uma carreira de sucesso, e trocariam qualquer coisa por um prazer inexplicável. O nome disso tudo é “filho”, e nos faz um bem danado, apesar de todo o dispendio físico, emocional e financeiro.
Inseridos na falsidade informativa estamos sendo levados a reproduzir pensamentos em vez de tê-los. Eu particularmente tenho sido empurrado para a descrença, pois é lá que tenho respostas. Na minha cidade uma cidadã tem suas supostas práticas sexuais reveladas ao público e isso passa a tomar conta de todo o burburinho provinciano. Nesse caso não se deveria discutir verdades ou mentiras, pois a ninguém interessa esse tipo de intimidade. Essa é a sociedade que não se aflinge com vazamentos de informação que constrangem despropositadamente uma pessoa a ponto de torná-la motivo de chacota, com sua vida pessoal e profissional destruída por um ímpeto de maldade fofoqueira. A vítima agora se presta a enviar mensagens aos conhecidos quase que suplicando que alguém escute sua versão. Espero que ela tenha desprendimento mental de seguir sua vida nadando contra a maré, usando sua fé em si mesma, na crença de que seres humanos são inegavelmente piores que robôs em muitos aspectos, sabendo que além de filhos somos capazes de criar amor próprio e discernimento para nadar no mar da humanidade liquefeita, absorta em suas individualidades, sorrindo de desgraças e perdida em caminhos que não levam a lugar algum.